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19 DE MARçO DE 2025
Artigo – Indisponibilidade de bens – Havia uma pedra no caminho – Parte III
Na primeira parte deste trabalho, detivemo-nos no retraço do desenvolvimento do instituto da indisponibilidade de bens desde os tempos da Ditadura Vargas, passando pelo Regime Militar de 19641, até chegarmos agora à criação da Central Eletrônica de Indisponibilidades de Bens aninhada no Portal do Extrajudicial pela Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo.2
No transcurso das iniciativas para a criação da plataforma da CNIB, despontaram estudos e discussões teóricas a respeito da criação de um repositório nacional que pudesse acolher e processar automaticamente as demandas originadas de autoridades judiciárias e administrativas. Pode-se cravar o ano de 2005 como o marco inicial das iniciativas concretas de discussões e estudos acerca da criação de uma central eletrônica compartilhada pelos cartórios brasileiros, no bojo dos trabalhos empreendidos entre o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) e a Associação Brasileira de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), no que ficou conhecido como GT Irib/Abecip.3
GT Irib/Abecip – Registro Eletrônico de Imóveis
O convênio de cooperação técnica e jurídica celebrado entre o IRIB e a ABECIP, firmado em 06/12/2002,4 deu origem a vários estudos empreendidos ao longo dos anos até que, no ano de 2005, iniciaram-se as discussões que visavam a criação do Registro de Imóveis Eletrônico, abarcando temas conexos como penhora online e central nacional eletrônica de indisponibilidade de bens.
Denominada originariamente de CII – Central de Indisponibilidade do IRIB, a ideia seria objeto de cogitação no grupo de trabalho dedicado aos estudos de reforma da legislação registral, “de forma a dar maior segurança jurídica nos negócios imobiliários, com celeridade e diminuição dos custos envolvidos, bem assim definir um cronograma de trabalho com vistas ao aperfeiçoamento do registro imobiliário”.5
Entre os objetivos perseguidos, destacavam-se a padronização dos contratos de crédito imobiliário, a criação do Registro Eletrônico e o enforcement da eficácia registral, com a “concentração de informações juridicamente relevantes na matrícula do imóvel” – ideia que mais tarde seria consagrada na Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015. No curso dos estudos, cogitou-se, ainda, a “penhora imobiliária online e a criação de uma central de indisponibilidade de bens, com acesso às informações por meios eletrônicos”.6
No dia 4 de março de 2005, seria apresentada aos diretores do IRIB uma “exposição pormenorizada” da “Central de Indisponibilidades do Irib (CII), para dar cumprimento ao disposto no arts. 185-A e 191-A” do CTN.7
Mais tarde, no dia 9 de março de 2005, na sede da ABECIP, seria apresentado o esboço do sistema de registro eletrônico em cujo contexto se achava o módulo de indisponibilidade de bens.8
Podemos identificar nessas ideias pioneiras o germe do que mais tarde viria a ser a CNIB – Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. Ao lado da penhora online, do ofício eletrônico, do banco de dados light e de tantas outras ideias que seriam concretizadas mais tarde pela ARISP – Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo, na gestão de Flauzilino Araújo dos Santos, a CNIB já era percebida e concebida como plataforma de serviço eletrônico compartilhado por todos os registradores imobiliários brasileiros.
O milagre da multiplicação dos gravames
O notável crescimento de demandas para alcançar bens e direitos nas execuções civis e trabalhistas por meio da indisponibilidade de bens fez surgir uma forte reação nos tribunais estaduais. O primeiro tribunal a expor claramente o problema, em sua correta perspectiva, foi o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. A Corregedoria Geral daquele estado baixaria o Aviso 029/GACOR/02, por meio do qual estabelecia novas diretrizes sobre o processamento da indisponibilidade de bens e requisições de informações sobre titularidades jurídico-reais. A partir daquela data, a CGJMG não mais acolheria as demandas, triangulando-as com os oficiais de registro de imóveis e isto porque, “consoante o disposto na legislação pertinente, a competência para comunicar a decretação da indisponibilidade de bens aos registradores de imóveis e, consequentemente, para obrigar a sua averbação na matrícula do imóvel respectivo, indubitavelmente, é do Juiz de Direito titular da ação”. E segue sugerindo que esse papel superpunha-se às atribuições legais de outros atores:
“Outrossim, as comunicações sobre decretação da indisponibilidade de bens realizadas pela Corregedoria Geral de Justiça, através de publicação no Órgão Oficial, atendendo às solicitações das autoridades nomeadas, não têm o condão legal de impingir aos Oficiais de Registro de Imóveis do Estado de Minas Gerais a incumbência de averbar essas declarações na matrícula do imóvel.
Ademais, na prática, essas solicitações dificilmente encontram solução pois, na maioria dos casos, não há indicação do registrador de imóveis competente para o cumprimento da constrição, não existe a individuação dos bens que a indisponibilidade tenha atingido e nem os respectivos emolumentos devidos pela prática do ato”.9
Os fundamentos e a razão de decidir eram corretos. A partir dessa decisão de Minas Gerais, progressivamente seriam redefinidas as atribuições das corregedorias estaduais na clivagem de ordens de indisponibilidade oriundas de fontes judiciárias e administrativas. Dois pontos da decisão mineira merecem destaque: (a) não compete à corregedoria acolher e intermediar ordens oriundas de outras fontes e (b) em face de ordens genéricas, não se define a autoridade registral competente para a prática de ato de averbação de indisponibilidade (art. 247 da LRP). A mesma orientação seria adotada por outros tribunais.10
Corregedoria Geral de Justiça de SP
Vivíamos no período uma verdadeira avulsão de ordens de indisponibilidade de bens, originadas de várias fontes – judiciárias e administrativas. Havia atos normativos baixados pelas corregedorias de outros estados interrompendo a intermediação e a triangulação de ordens. Em São Paulo, instaurou-se o Protocolado 48.531/2003, que originou o parecer 108/2007-E, aprovado pelo Corregedor Geral de Justiça de São Paulo, Desembargador Gilberto Passos de Freitas.11 É da lavra do Sr. Corregedor:
“Tendo em vista, porém, o número expressivo de expedientes oriundos de juízos e autoridades administrativas deste e de outros Estados da Federação, circunstância que vem comprometendo o adequado desempenho das atividades do Departamento incumbido do repasse das informações aos oficiais de registro de imóveis do Estado, determino a suspensão provisória das comunicações de indisponibilidades de imóveis por esta Corregedoria Geral da Justiça, até que se concretize a informatização do setor”.12
Despontava a ideia de racionalização do sistema. Seria oficiado à Egrégia Presidência do Tribunal de Justiça, “visando às providências necessárias à informatização das comunicações de indisponibilidades” (…), em especial no sentido de obter o concurso da Secretaria de Tecnologia da Informação do Egrégio Tribunal de Justiça para a disponibilização de link no site do TJSP destinado a recepcionar referidas comunicações de indisponibilidades, garantidas a segurança do sistema e a observância de sigilo, quando este se fizer necessário”.13
Originava-se, a partir desse impulso original, a ideia de criação do Portal do Extrajudicial. A fim de ganhar tempo para o desenvolvimento da plataforma alvitrada, foi baixado o Provimento CG 8/2007, com o seguinte teor:
“Art. 1º: A Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não mais recepcionará solicitações para comunicações a respeito de indisponibilidade de bens a oficiais registradores de imóveis oriundas de autoridades judiciárias e administrativas deste e de outros estados da Federação.
Art. 2º: A suspensão das comunicações de indisponibilidade, determinada no art. 1º supra, perdurará até a informatização dos procedimentos necessários ao atendimento adequado das solicitações.
Art. 3º: Enquanto perdurar a suspensão das comunicações de indisponibilidade estabelecida por intermédio deste provimento, as autoridades judiciárias e administrativas deverão informar diretamente aos oficiais registradores de imóveis do Estado de São Paulo as indisponibilidades decretadas, para a devida anotação nos registros imobiliários”.14
O Provimento CG 8/2007 foi encaminhado às demais corregedorias estaduais, fazendo coro às disposições congêneres baixadas em atos normativos dos demais órgãos dos tribunais de justiça.
Portal do extrajudicial e o hub da indisponibilidade
A reformulação do sistema não tardaria. Já não era possível dar marcha à ré no acolhimento e processamento de tais demandas e retornar ao modelo de emissão de milhares de ofícios a cada corregedoria estadual que, por seu turno, os redistribuiria a cada serventia imobiliária dos estados da federação. Tampouco a CGJSP se exoneraria da responsabilidade de dar efetividade a ordens oriundas de milhares de processos judiciais e administrativos que se serviam progressivamente do poderosíssimo instrumento da indisponibilidade de bens.
O passo seguinte foi o anúncio do Comunicado CG 1.029/2007, por meio do qual o corregedor geral da justiça convocaria “apenas os delegados ou responsáveis pelo expediente de todas as Unidades Notariais e Registrais da Comarca da Capital para a solenidade de apresentação e implantação, nesta Comarca, do Portal do Extrajudicial da Corregedoria Geral da Justiça”. A solenidade de fato ocorreu no dia 19 de outubro de 2007, sexta-feira, às 10 horas, no auditório do prédio situado na Avenida Paulista n° 750.15 Assim, em janeiro de 2008, todas as serventias imobiliárias bandeirantes já dispunham de um canal de comunicação online por intermédio do Portal do Extrajudicial.
Criado o Portal do Extrajudicial, seria dado um novo passo rumo à criação de um hub de informações por meio do qual as comunicações de indisponibilidades seriam recebidas e redirecionadas automaticamente para os registradores imobiliários bandeirantes. Uma vez mais, é possível verificar como a criação de um sistema no formato de broadcasting model, consistente em um só ponto central e ativo de convergência e distribuição de informações para vários receptores passivos, levaria o modelo progressivamente ao colapso e à desnaturação do instituto da indisponibilidade de bens tal como o conhecíamos desde a Era Vargas.
A centralização e operacionalização do Portal do Extrajudicial seria posta em funcionamento a partir do parecer aprovado em 10 de abril de 2008, originando o Provimento CG 16/2008.16 O ato normativo foi bastante conciso:
Provimento CG 16/2008 (…)
Artigo 1º: Fica revogado o Provimento CG nº 8/2007.
Artigo 2º: As solicitações encaminhadas à Corregedoria Geral da Justiça para comunicações genéricas de indisponibilidade de bens imóveis a oficiais registradores de imóveis, oriundas de autoridades judiciárias e administrativas deste e de outros Estados da Federação, serão transmitidas aos destinatários pelo Portal do Extrajudicial.
Artigo 3º: Este provimento entrará em vigor na data de sua publicação.
São Paulo, 18 de abril de 2008.
Ruy Pereira Camilo.17
No parecer, aprovado pelo Sr. Corregedor Geral, destacava-se a importância do “auxílio às autoridades judiciárias e administrativas para que decisões judiciais e prescrições legais sejam efetivadas e implementadas, naquilo que concerne à atividade dos registradores públicos”. Várias eram as fontes originárias de ordens no bojo de processos de falência, de decisões de natureza cautelar, de ações de improbidade administrativa, de medidas cautelares fiscais, de liquidação extrajudicial ou de regime de direção fiscal de entidades de previdência e saúde, entre outras. A síntese do parecer é a seguinte:
1) Escaninho próprio.
- a) As comunicações de indisponibilidade serão inseridas em área de acesso restrito aos oficiais de registro de imóveis do Estado de São Paulo.
- b) Dados a serem reproduzidos no portal: (a) Identificação da autoridade que emitiu a ordem de indisponibilidade; (b) Fundamento da decretação da indisponibilidade; (c) Identificação da pessoa natural atingida (com RG, CPF, naturalidade, estado civil, data de nascimento, para evitar homônimos); (d) Identificação da pessoa jurídica atingida (com CNPJ); (e) especificação de que a indisponibilidade abrange bens imóveis indeterminados (todos do patrimônio da pessoa atingida, até valor especificado, se for o caso); (f) Indicação de segredo de justiça, quando adotado pela autoridade competente.
2) Processo de recebimento e análise:
- a) O mandado ou ofício recebido será autuado pelo departamento competente com número próprio de procedimento
- b) Um juiz auxiliar da Corregedoria analisará a viabilidade da comunicação e determinará sua execução ou correção de falhas.
3) Lançamento e certificação no Portal do Extrajudicial:
- a) O Departamento da Corregedoria lançará as comunicações de forma célere no portal.
- b) O escrevente certificará data e hora do lançamento no procedimento respectivo.
- c) O portal registrará data e hora da inserção, com manutenção de arquivo de segurança.
4) Tratamento de segredo de justiça:
- a) Dados dispensáveis serão omitidos no portal, mas a identificação da autoridade, da pessoa atingida e dos bens sujeitos à restrição será mantida.
- b) A publicidade da averbação no registro público torna a restrição de conhecimento geral, dispensando sigilo excessivo.
5) Obrigações dos oficiais de registro de imóveis:
- a) Verificação diária obrigatória (início e fim do expediente) das comunicações no Portal do Extrajudicial.
- b) Buscas nos assentamentos para identificar imóveis dos atingidos.
- c) Impressão da comunicação, lançamento no Livro Protocolo, qualificação e averbação (se positiva).
- d) Anotação na comunicação da data de disponibilização no portal, com data e rubrica.
6) Arquivamento e segurança:
- a) Os oficiais poderão usar arquivos informatizados (digitalização ou sistema equivalente) para ordens materializadas.
- b) Opção entre arquivamento físico ou em mídia digital para atos do Livro de Registro de Indisponibilidade.
7) Levantamento de indisponibilidade:
- a) Seguirá os mesmos procedimentos de comunicação, qualificação e averbação.
8) Indisponibilidade de bem imóvel determinado:
- a) Encaminhada diretamente ao oficial de registro competente pela autoridade que a decretou, sem intervenção da Corregedoria (salvo exceções analisadas caso a caso).
9) Revisão e implantação:
- a) Os procedimentos poderão ser revistos e aprimorados com base na evolução dos sistemas e sugestões dos usuários.
- b) Prazo de 15 dias para que departamentos e oficiais de registro implantem o sistema proposto.18
Inadequação tecnológica – one size fits all?
Entretanto, o modelo não se mostrou plenamente satisfatório, de molde a superar as imensas dificuldades de processamento das crescentes demandas oriundas de instâncias espraiadas por todo o país. Seja como for, estava criado o hub de indisponibilidade de bens no Estado de São Paulo, marco que pode ser considerado o primeiro passo concreto na criação de uma central de indisponibilidades no país.
Entretanto, não tardaria e os oficiais logo seriam confrontados com centenas de ordens judiciais e extrajudiciais de indisponibilidade de bens que eram roteadas pelo Portal da Corregedoria. A racionalização do envio de dados por uma nova infovia não encontrava, nos destinatários, a mesma adequação operacional capaz de processá-los, à míngua de ferramentas tecnológicas capazes de assimilar a crescente onda de ordens e contraordens postadas em meios eletrônicos.
O espartilho tecnológico, de modelo único, não servia a todos os pontos vinculados ao hub correcional do portal criado. Os cartórios não estavam aparelhados para receber demandas no formato broadcasting (modelo central de difusão), pois trabalhavam no ambiente de infraestrutura assíncrona, sem controle de recepção e acesso, sem logs, sem gestão do arquivo transitivo: imprimiam-se em papel as ordens eletrônicas oriundas do portal para tratamento tradicional (prenotação, exame etc.). A inadequação dos meios para tratamento da informação recebida era evidente. A criação do Portal do Extrajudicial inaugurou a infraestrutura que resolvia parte do problema, representado pelo refluxo das ordens dirigidas à plataforma de permeio (CGJSP).
O referido portal abriria avenidas informacionais por onde passaram a correr as ordens instantâneas de indisponibilidade, acarretando o seu represamento nos destinatários finais. Os registradores ressentiam-se da falta de suporte tecnológico para acolher o inesperado crescimento de requisições digitais. Buscava-se enfrentar a profusão informacional com recursos humanos, sem o concurso de ferramentas tecnológicas aptas para processar e gerenciar tais demandas. A boutade de McLuhan – o meio é a mensagem – traduz o fenômeno proporcionado pelos meios eletrônicos no caso concreto: “Each form of transport not only carries, but translates and transforms, the sender, the receiver, and the message”.19 A parte final do processo não resistiria à crescente avulsão de requisições – algo semelhante ao ocorrido nas demandas do Ofício Eletrônico, ainda em 2007.20
Os registradores aproveitariam a visita do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. Roberto Antonio Vallim Bellocchi, à comarca de Monte Alto para apresentar o pleito de criação de uma “Central de Registro de Indisponibilidade” no Estado de São Paulo. O registrador Oswaldo Ney de Miranda encaminharia o Ofício 109/2009, de 15/06/2009, com o seguinte teor:
“Pelo presente, e considerando a deliberação tomada em reunião realizada no dia 27 de junho p. p. [2009], em que estavam presentes diversos Oficiais Registradores da Região de Ribeirão Preto, tenho a honra de me dirigir a V. Exa. com o fim de solicitar os elevados estudos deste E. Tribunal e do departamento competente da Corregedoria Geral da Justiça, no sentido de se buscar a implantação de uma ‘Central de Registro de Indisponibilidade’, no Estado de São Paulo.
“Esclareço que a sugestão tem por escopo a maior celeridade no cumprimento das medidas determinadas pelas autoridades competentes, judiciais e administrativas, visando assegurar direitos e obrigações, tornando o conhecimento por parte dos interessados bastante rápido e seguro acerca da existência de tais gravames sobre os bens envolvidos em transações imobiliárias”.21
O advento do Provimento CG 16/2008 representou um embaraço inesperado para as serventias do interior paulista. Na reunião realizada no dia 12 de setembro de 2009, em Ribeirão Preto, os colegas ali congregados decidiriam oficiar à AnoregSP na busca de uma solução para a situação “que está se tornando um problema”, como diriam eufemisticamente.22
Os registradores enviaram ofícios ao Presidente do Tribunal de Justiça que, por seu turno, determinou a formação de um dossiê que foi encaminhado à Corregedoria Geral de Justiça.23 Autuado, o presidente da ARISP, Flauzilino Araújo dos Santos, foi convidado a pronunciar-se, logo acolhendo a sugestão de seus pares do interior do Estado. A informação prestada expressava a realidade enfrentada pelos registradores:
“Todavia, deve ser compreendido que, atualmente, para os serviços registrais de pequeno porte, ante o grande volume de comunicações, notadamente por decisões judiciais em execuções fiscais, a impressão dos comunicados publicados no Portal Extrajudicial e sua prenotação, inserção nos indicadores, registro, microfilmagem e digitalização final, representa uma enorme carga de serviços, com evidente peso nos orçamentos das serventias.
Peço vênia para mencionar que apenas no presente exercício de 2009 já foram publicados 1.479 comunicados de indisponibilidades, envolvendo milhares de nomes, a maioria deles de pessoas que não são titulares de imóveis ou direitos reais que possam ser afetados, registrados nas serventias do Estado.”24
Ordens inócuas – index vacuus
Despontava, aqui, o fenômeno da proliferação de ordens inócuas que não repercutiam em direitos inscritos e que repousavam em latência nas bases de dados da plataforma, por longos anos, sem qualquer utilidade. Além disso, o presidente da ARISP constatava que o processamento das indisponibilidades representava – especialmente para as pequenas serventias do interior – carga de trabalho superior ao dedicado ao processamento de títulos apresentados a registro, concluindo, realisticamente, que é “de ser reconhecido que, para as serventias de pequeno porte, [o processamento] representa um gasto considerável nas despesas mensais”.25
Para obviar os problemas identificados, a ARISP sugeriria a criação e a implantação de um “Sistema Web de Alta Disponibilidade” que pudesse funcionar, de forma segura e eficaz, como uma central interoperável, sistema que foi planejado e desenvolvido pela entidade.26
Entretanto, a proposta não foi acolhida pela Corregedoria Geral da Justiça pelos seguintes motivos:
A criação de uma central de indisponibilidades implicaria profunda modificação na sistemática atualmente em vigor, com a supressão do Livro de Registro de Indisponibilidades e do Classificador relativo às comunicações de indisponibilidade.
As comunicações de indisponibilidade constariam de um único cadastro eletrônico, mantido pela ARISP, exonerando-se as unidades de registro de imóveis das tarefas e dos custos relativos à prenotação, à inserção nos indicadores, ao registro e à microfilmagem ou digitalização final.
A central poria fim à centralização das comunicações na Corregedoria Geral da Justiça, o que não se mostra compatível com as NSCGJSP, por levar à criação de modelo totalmente novo.
Ao se concentrarem as comunicações de indisponibilidade na central, seria suprimida “a materialização e a anotação dos atos nos livros e registros próprios das serventias prediais, dificultando, consequentemente, a fiscalização e a verificação imediata, em cada uma das serventias, do recebimento dos informes oriundos de autoridades administrativas e judiciais”.
O novo sistema tenderia a retirar dessa Corregedoria Geral a centralização dos comunicados de indisponibilidade, com prejuízo à pronta adoção de providências destinadas a sanar eventuais vícios nos comunicados.
À guisa de conclusão, diria o parecerista:
“Disso tudo resulta, salvo melhor juízo de Vossa Excelência, a impossibilidade do acolhimento do requerimento apresentado pelos Senhores Oficiais Registradores das Comarcas antes referidas, dada a incompatibilidade da proposição formulada com as Normas de Serviço desta Corregedoria Geral da Justiça, o que não impede, evidentemente, a continuidade de estudos tendentes ao aperfeiçoamento do sistema de recebimento e repasse de comunicações de indisponibilidade de bens imóveis oriundas dos órgãos e autoridades competentes, inclusive com a devida consideração das necessidades e expectativas do conjunto dos Registradores Imobiliários do Estado de São Paulo.”27
De fato, o modelo representaria (como de fato representou) a ruptura do modelo tradicional de roteamento de ordens judiciais destinadas a cada unidade de registro imobiliário do Estado. Estávamos às portas de um novo paradigma, representado pelo compartilhamento de recursos tecnológicos pelo oficiais registradores. Os livros tradicionais seriam substituídos pela plataformização dos registros, com repositórios sediados na nuvem e compartilhados por todos os oficiais do Brasil.28 Anteriormente, em 2008, havíamos identificado e apontado o fenômeno de reestruturação das serventias e dos livros tradicionais (media) em razão dos impactos das novas tecnologias de informação e comunicação. Estava em curso uma profunda transformação nos meios e isso acabaria por modificar o próprio sistema registral.29
Vésperas do Provimento CNJ 39/2014
Entrementes, no âmbito de inspeções promovidas pelo CNJ durante os anos de 2009-2010, verificou-se que havia serventias que nem sequer sabiam da existência da figura da indisponibilidade de bens, inexistindo quaisquer registros, cadastros, índices ou outras formas de inscrição para acolher e tornar eficazes as ordens de indisponibilidade emanadas da administração. Vale novamente o depoimento de Flauzilino Araújo dos Santos acerca da situação:
“A ideia de se fazer uma central de indisponibilidade de bens decorreu de uma inspeção que o CNJ fez numa cidade chamada Curionópolis.30 Eu tive a honra de participar, no bojo de um projeto que era desenvolvido no Conselho Nacional de Justiça, coordenado pelo Dr. Marcelo Berthe, quando ele foi juiz auxiliar da presidência do CNJ, no âmbito no Fórum de Assuntos Fundiários, para modernização dos cartórios dos estados que compõem a Amazônia Legal.31 (…)
Em uma inspeção na cidade de Curionópolis, nós descobrimos que um personagem muito conhecido, processado pela Justiça Criminal Federal de São Paulo, e que estava com os seus bens indisponíveis por decisão judicial, tinha, lá, nessa comarca, 12 fazendas, todas elas (…) livres e desembaraçadas de quaisquer ônus etc., etc., etc., sendo que na realidade ele estava com os bens indisponíveis…
Então, surgiu naquela oportunidade a ideia de se firmar um convênio entre a ARISP e o Conselho Nacional de Justiça para desenvolver uma Central Nacional de Indisponibilidade de Bens.
Nós desenvolvemos essa Central, o convênio foi firmado na seção solene do quinto aniversário do CNJ, em 2010 (…)”32.
O convênio referido seria firmado em 14 de junho de 2010. As entidades representativas dos registradores e o CNJ comprometiam-se a cooperar tecnicamente, envidando esforços para criação da Central Nacional de Indisponibilidades de Bens, buscando “imprimir celeridade nas comunicações das indisponibilidades de bens imóveis decretadas pelo Poder Judiciário e por Autoridades Administrativas aos serviços extrajudiciais de notas e de registro de imóveis de todo o território nacional”.33
A celebração do convênio com o CNJ foi o fruto do trabalho empreendido pelos registradores paulistanos Joélcio Escobar e Flauzilino Araújo dos Santos, com muitas sugestões, revelando aos magistrados o esboço da plataforma concebida no Estado de São Paulo.
“O modelo proposto visa modernizar o trâmite das comunicações de indisponibilidades de bens imóveis, migrando do papel para o meio eletrônico.
A Central Nacional de Indisponibilidade de Bens Imóveis seria um sistema que integraria as informações das indisponibilidades encaminhadas para as Corregedorias Gerais de Justiça dos estados e destas para os cartórios extrajudiciais de registro de imóveis.
O sistema gerenciaria eletronicamente as indisponibilidades cadastradas pelas corregedorias estaduais, juízes de direito e autoridades administrativas competentes para decretar indisponibilidades. Comandos digitais seriam gerados e enviados de forma segura para os cartórios de registro de imóveis, com controles do trâmite desde o cadastramento até o retorno dos atos praticados pelos oficiais de registro.”34
A central ainda tardaria um pouco mais. Veremos na parte IV deste opúsculo o trâmite dessa ideias no Conselho Nacional de Justiça.
LSITEC – o registro de imóveis eletrônico
De outra banda, no âmbito dos trabalhos empreendidos no bojo do convênio celebrado entre a União e a Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos – Lsitec, para especificação de modelo de Sistema de Registro Eletrônico para Cartórios de Registro de Imóveis35, o tema da indisponibilidade já havia sido antevisto e sua estruturação consagrada na documentação técnica. Na especificação do modelo, o módulo achava-se assim detalhado:
3.3.2 Base de indisponibilidade de bens. Para auxiliar no serviço de indisponibilidade de bens, o SAEC mantém uma base atualizada e consolidada sobre os pedidos de indisponibilidade de bens.
Quando um pedido de indisponibilidade de bem (inclusão ou exclusão) é recebido pelo SAEC, a base de indisponibilidade de bens do SAEC é atualizada e o pedido é encaminhado aos cartórios possivelmente relacionados.
A base de indisponibilidade é mantida atualizada e os oficiais podem consultá-la quando do exame de um registro.
3.3.3 Base de CPF. Para otimizar a distribuição de pedidos de indisponibilidade de bens aos cartórios, evitando que cada pedido seja encaminhado a todos os cartórios do Brasil, é fundamental a existência de uma base minimalista de CPF de detentores de direitos reais, passados ou atuais, e respectivo cartório. Dessa forma, os pedidos são encaminhados somente para alguns cartórios nos quais a pessoa teve ou tem algum direito real.
Essa base de CPF pode ser utilizada, também, para otimizar o serviço de identificação de propriedade para atendimento a agentes de financiamento imobiliário.36
Destaque-se, de passagem, que já se previa a perquirição prévia acerca de existência de bens e direitos registrados em nome do atingido, o que seria feito a partir da consulta aos indicadores pessoais (CPF). Dessa forma, os pedidos seriam encaminhados, exclusiva e diretamente, para os cartórios nos quais a pessoa tivesse ou teria algum direito real inscrito. Lamentavelmente, o caudal de estudos empreendidos ao longo de uma década não serviu para a criticada reforma da plataforma com o advento da chamada CNIB 2.0. A ela voltaremos mais adiante.
Vamos nos debruçar sobre os próximos lances da criação da CNIB na parte seguinte deste trabalho. Veremos como as sementes germinaram e acabaram lançando ramos em várias direções até que viessem os esperados frutos.
Fonte: Migalhas
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